Clássicos em Medicina de Emergência - Estudo CRASH-2

Editor: Lucas Silva, MD, MS, FABRAMEDE

Cenário clínico

O início do ano é sempre marcado por transições na hierarquia médica, com a entrada dos R1s e a saída dos R3s. No entanto, as situações que surgem nunca são repetitivas e os residentes se mantêm sempre alerta. Imagine-se em seu primeiro plantão, quando um paciente de 65 anos chega após ter sido atropelado por um carro. Como R1 da medicina de emergência, você identifica que o paciente apresenta sinais de choque, como taquicardia e hipotensão, e inicia sua avaliação primária. Seu R+ já vai ligando para o banco de sangue e pede para a enfermagem preparar o ácido tranexâmico (1 g em bolus seguido de 1 g em 8 horas) enquanto você continua a examinar o paciente.

Felizmente, o manejo inicial é eficaz e o paciente apresenta melhora hemodinâmica. Na tomografia, são identificadas lesões esplênicas e hepáticas, e a cirurgia do trauma decide por um tratamento não-operatório. No fim do plantão, você procura seu R+ para entender por que o ácido tranexâmico foi utilizado nesse caso específico. Ele então sugere que você leia o CRASH-2 trial, que traz informações valiosas sobre o assunto.

Citação

CRASH-2 trial collaborators, Shakur H, Roberts I, et al. Effects of tranexamic acid on death, vascular occlusive events, and blood transfusion in trauma patients with significant haemorrhage (CRASH-2): a randomised, placebo-controlled trial. Lancet. 2010;376(9734):23-32. doi:10.1016/S0140-6736(10)60835-5

Questão PICO

  • População: pacientes adultos (idade ≥ 18 anos) vítimas de trauma, pressão arterial sistólica (PAS) < 90 e/ou frequência cardíaca (FC) > 110 bpm, ou sob risco de hemorragia significativa, que chegaram à emergência com até 8 horas do trauma.
  • Intervenção: ácido tranexâmico (1g em bolus diluído em 100 ml de salina seguido de 1g em 8 horas). 
  • Controle: placebo
  • Outcomes (desfechos): 
    • Primário: mortalidade em 4 semanas
    • Secundários: eventos vaso-oclusivos (IAM, AVC, TEP e TVP), intervenções cirúrgicas (neurocirurgia, cirurgia torácica, cirurgia abdominal e cirurgia pélvica), recebimento de transfusão sanguínea e quantidade de unidades, funcionalidade (5-point modified Oxford Handicap Scale) 

Centros do Estudo

  • Estudo multicêntrico.

    • 274 hospitais em 40 países diferentes 🌎.

Delineamento do Estudo

  • Ensaio clínico randomizado.

Resultados

  • Um total de 20,211 pacientes foram randomizados. 
  • Mortalidade por todas as causas
    • 1463/10060 (14.5%) no grupo do ácido tranexâmico
    • 1613/10067 (16.0%) no grupo placebo
      • Risco relativo (RR) = 0.145 / 0.16 = 0.91 (95% CI 0.85 - 0.97)
      • Redução de risco relativo (RRR) = 1 - 0.91 = 9%
      • Redução de risco absoluto (RRA) = 0.16 - 0.145 = 0.015 = 1.5%
      • Número necessário para tratar (NNT) = 1 / RRA = 1/0.015 = 67
  • Mortalidade por sangramento
    • 4.9% (ácido) vs 5.7% (placebo)
      • RR = 0.049/0.057 = 0.85 (95% CI 0.76 - 0.96)
      • RRR = 1 - 0.85 = 15%
      • RRA = 0.057 - 0.049 = 0.008 = 0.8%
      • NNT = 1/0.008 = 125
  • Morte ou dependência na alta ou em 28 dias
    • 34.3% (ácido) vs 35.4% (placebo)
      • RR = 0.97 (95% CI 0.93 - 1.00)

Checklist de ensaios clínicos randomizados do Best Evidence of Emergency Medicine (BEEM)

  • Pacientes de emergência? Sim
  • Os pacientes foram adequadamente randomizados? Sim
  • Houve sigilo de alocação? Sim
  • Os pacientes foram analisados nos grupos aos quais foram randomizados? Sim
  • Os pacientes foram recrutados consecutivamente? Sim
  • Os pacientes em ambos os grupos foram semelhantes com relação aos fatores prognósticos? Sim
  • Os participantes não estavam cientes da alocação do grupo? Sim
  • Os grupos foram tratados igualmente, exceto pela intervenção? Sim
  • O follow-up foi completo? Não foi 100% mas próximo
  • Todos os desfechos importantes para os pacientes foram considerados? Sim
  • O efeito do tratamento foi grande e preciso o suficiente para ser clinicamente significativo? Sim.

Principais comentários 

  • No geral, a qualidade desse trial é boa, seguindo a maioria dos princípios de um ensaio clínico randomizado com baixo risco de vieses. 
  • Viés de seleção possível: médicos excluíram pacientes em que eles achavam que o ácido tranexâmico era indicado ou contraindicado, mas não há nenhum dado de quantos pacientes foram excluídos nesse sentido.
  • Apesar do CRASH-2 incluir uma porcentagem importante de pacientes não chocados (somente 50% recebeu transfusão de sangue), os resultados do trial foram muito animadores considerando uma intervenção barata e com um benefício em mortalidade (NNT = 67).
  • Estudos subsequentes acabaram mostrando que o benefício do ácido tranexâmico em pacientes vítimas de trauma é maior em pacientes mais graves (i.e., mais instáveis hemodinamicamente) e naqueles que recebem a intervenção nas primeiras 3 horas do trauma.
  • Chama a atenção o fato de não haver diferença no desfecho de morte ou dependência em 28 dias, o que pode sugerir que essa intervenção não implique em um maior número de pacientes sobrevivendo com boa funcionalidade após o trauma.